terça-feira, 22 de junho de 2010

Implícito, mas óbvio

Eu sempre estive muito bem na minha ignorância ignorada. Percorria as manchetes do jornal me atendo às questões mais relevantes, lendo na maioria das vezes as quatro ou cinco linhas principais de cada matéria. Na época do vestibular, aprendi que pelo menos a primeira e a segunda página do jornal deveriam ser lidas na íntegra, diariamente. Mas nem isso eu fazia mais, um pouco pela pela pressa crônica do cotidiano, um pouco por preguiça. Eis que uma cena no Largo da Carioca muda tudo.

Eu passava apressava não sei pra que e vi uma menina com seus quatro ou cinco anos sozinha, agachada em frente a uma tenda de livros velhos armada na grade do prédio do BNDES, uma espécie de sebo ambulante. Ela se atinha a um livro de viagens. Com um esboço de sorriso e olhinhos curiosos, lia sem saber ler, absorvendo a estória por seus desenhos coloridos e sua imaginação.

Do mesmo jeito que o cego mascando chicletes perturbou Clarice, aquela cena me despertou para um dos muitos contrastes do comportamento humano que até então não tinha me ocorrido. Ela, ávida pelo saber, lia imagens. Eu, por excesso de informação, já não lia. Foi o suficiente para desencadear em mim o processo inverso. Começei a ler o jornal inteiro, depois dois, três jornais por dia. Logo passei a jornais, blogs e informativos pela internet. Os livros continuavam a ser um bom passatempo, mas agora eu lia com urgência, pensando já no livro seguinte. A escolha do próximo livro viria a ser um dilema, diante de tantos autores e diferentes obras. Começarei pelos clássicos, pensei, numa tentativa vã de não enlouquecer. Mas já era tarde. Os clássicos eram muitos e novos escritores produziam insanamente. A cada dia a lista de livros a ler, pesquisas, história, filosofia, pensadores crescia, me atropelando. Quanto mais eu lia, menos eu parecia saber, tanto havia ainda para ser descoberto, absorvido, explorado.

Voltei a procurar a menina do Largo da Carioca. Se ela havia iniciado aquele processo, talvez me ajudasse a sair dele. Nos três primeiros dias que voltei na tenda de livros, não a encontrei. No quarto dia, saindo do trabalho, a vi sentada na porta da estação do metrô, folheando um jornal velho. Uma menina mais velha, parecida com ela, sentava ao seu lado pedindo esmolas. Me aproximei da pequena e perguntei se ela sabia ler. Como eu imaginava, ela disse que não. Perguntei então o que ela via naquelas folhas. Com vocabulário pobre e dicção perfeita, ela me explicou que cada imagem era uma estória. Apontei a foto de capa da primeira página, a imagem de uma enchente. Ela disse que era a cidade dos peixes. Depois mostrei a foto de uma partida de futebol, e ela disse que era o time em que o irmão jogaria um dia. Por último mostrei a foto de um político danto entrevista, e ela falou que era o dono da cidade, dizendo que todas as crianças tinham que ir para a escola. Não foi preciso outras perguntas. A coerência da imaginação daquela menina pobre, sem perspectivas, me tranquilizara. O mundo não estava perdido com o excesso de informação. Havia ainda quem conseguia tirar conteúdo do que não estava escrito, do que era implícito mas óbvio. Voltei para casa. Ao deitar abri um livro, li apenas o primeiro capítulo e dormi.


XXX

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