domingo, 24 de março de 2024

Ideologias em 2024


 “As ideologias têm fronteiras que separam, mas também comunicam e influenciam. Essas fronteiras estão soterradas pela ausência de diálogo – apenas nas redes sociais, pois os políticos dos quais os internautas são fãs estão lá fazendo acordos e conversando”

Poderia ter gostado deste livro apenas por ser um passeio didático, claro e pragmático pelas três principais ideologias que sustentam nossas discussões atuais (o Liberalismo, o Conservadorismo e o Socialismo), mas as reflexões autorais entre uma coisa e outra são ainda melhores. 

Para alguém como eu, que sempre pregou pelo cinza entre o preto e o branco, foi uma grata surpresa a analogia perfeita das ideologias às cores.  Temos uma diversidade  enorme de cores que conforme a variação do tom vão se aproximando de outras cores, que combinadas formam novas cores. Combinando nuances teríamos uma paleta de cores cada vez maior e diversa, só que não vivemos em tempos de nuances. Ou é preto ou é branco. “O que mais tem por aí é simplificação ou rotulação. Não importa o que a pessoa diz que pensa e sim a distorção do interlocutor, como ele ouve o que ela diz. Parte disso é jogo sujo, mas parte é recusa a tudo que é complexo, porque compreender cansa”.

Ideologias - Gabriela Prioli - Grupo Companhia das Letras

Mais no instagram: @metropoledostrinta

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terça-feira, 5 de março de 2024

Maratona Oscar: Os Rejeitados

 


O último filme da maratona Oscar deste ano – e a primeira vez que consegui ver todos os 10 indicados, para dar meus pitacos com propriedade! – Os Rejeitados fechou com chave de ouro a maratona por adotar um estilo que eu gosto na vida: o simples bem feito.

O filme começando com meia dúzia de alunos com notas baixas retidos numa escola americana durante as férias de fim de ano até poderia levar a uma interpretação rasa de que “Os Repetentes” traduzisse melhor.  Mas Os Rejeitados é perfeito e não só no título.  É perfeito em emocionar com leveza, em divertir apesar do drama, em fugir da previsibilidade e em trazer atuações brilhantes. 

O filme do diretor Alexander Payne, que já venceu o Globo de Ouro e o Critics Choice Awards, concorre em 5 categorias do Oscar: filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro original e montagem. E é uma daquelas produções em que o roteiro é ótimo mas as interpretações são tudo.  Dominic Sessa é um estreiante que de alguma forma nos é familiar (como pode?). Da'Vine Joy Randolph tinha tudo para fazer um personagem que já vimos, e não faz. E não será nenhuma surpresa se Paul Giamatti (que fez “O Resgate do Soldado Ryan”) levar o Oscar de melhor ator.


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domingo, 3 de março de 2024

Maratona Oscar 2024: American Fiction

 


Ficção Americana não é a “meta-narrativa arrebatadora de artista em conflito com a arte” (ZZZZZZZZZZZ...) como começa a crítica do Omelete sobre o filme.  Tampouco tem a ver apenas com inclusão de minorias e racismo, como a turma do Adoro Cinema colocou com o título genial de “Está preto o suficiente?”.  Indicado a 5 categorias do Oscar, e que apareceu no Prime esta semana de presente para os cinéfilos, o filme é a meta-narrativa de uma sociedade com tendência de consumir lixo - especialmente a sociedade americana, e logo também a nossa, já que o mundo segue colonizado culturalmente por eles.

Sátira dos modismos politicamente corretos, e por isso obviamente sem pretenções-palestrinha, o filme do diretor e roteirista também estreiante no Oscar, Cord Jefferson, tem passagens ótimas, como a regra n.1 das vendas: nunca subestimar o poder da idiotice.  Ou a falta de preocupação de pescarem uma armação literária porque “em Hollywood ninguém lê, eles só leem os resumos preparados pelas assistentes”.  Mas minha metáfora favorita foi a comparação das obras do protagonista (Jeffrey Wright, indicado para melhor ator e perfeito num papel que poderia destruir o filme se não tão bem executado) com os selos dos whiskies Johnnie Walker: O Red Label para consumo mais massificado, o Black Label para os mais sofisticados e o Blue Label para os fora da curva - caríssimos e raramente consumidos.  É louvável escrever para Black/Blue label mas as editoras querem o Red.  E voilà! Temos aí a metalinguagem perfeita que transcende o cinema e aterriza perfeitamente adivinhem onde?

#AmericanFiction #Oscar2024

sexta-feira, 1 de março de 2024

Maratona Oscar 2024: Vidas Passadas

Vidas Passadas é um filme da vida presente. Da vida como ela é, com todos os encontros e desencontros que temos com o passar dos anos, nesta vida.  A referência à reencarnação e a outras vidas, sugerida pelo nome do filme, é abordada muito sutilmente quando se apresenta a ideia de que pessoas que se encontram e permanecem juntas teriam um elo de predestinação.  

Mas o filme não é sobre predestinação, é sobre escolhas.  Escolhas, amor, afinidade.  Afinidade é um sentimento (ou uma série deles) que muitas vezes não deixa de existir.  Você pode escolher, ou ser forçada pelas circunstâncias, a não dividir mais a vida com uma pessoa, mas a afinidade, se genuína, não morre.  Adormece, iberna, tira longos períodos sabáticos, mas vive sujeita a crescer ou morrer, a depender de nossas escolhas. 

Afinidades permanentes em caminhos intermitentes, seria o resumo – sempre sem spoilers - deste filme que é a estreia da Sul-Coreana Celine Song na direção para cinema, concorrendo nas categorias de melhor filme e roteiro original no Oscar 2024. Que estreia!



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Maratona Oscar 2024: Pobres Criaturas

 Pobres Criaturas é um realismo fantástico bizarro e dos bons! Emma Stone está ótima como sempre mas o @markruffalo se superou! A cena deles dançando já vale o filme, que também tem uma fotografia linda, diálogos inteligentes e divertidíssimos! Vale conferir o perfil do diretor @yorgoslanthimos no Instagram, tão conceitual como sua direção.



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Maratona Oscar 2024: Zona de Interesse


Jamais pensei ser possível tratar temas espinhudos com sutileza no cinema. Espinhudos como os horrores do holocausto, muito menos. Por conta disso, a indicação para oscar de melhor direção, dentre os 5 outros que Zona de Interesse está concorrendo, talvez seja a mais merecida. O diretor inglês Jonathan Glazer traz uma sutileza atípica: aquela que acaba te dando um tapa na cara, com delicadeza.

É um filme que mora no entorno. Mora nos detalhes, numa banalidade genial (que explica o favoritismo para a indicação de melhor filme internacional, quizas melhor filme). Mora na música, nos sons perturbadores (indicação mixagem de som), mora na simplicidade de mostrar o lado B em uma película “em negativo” enquanto o lado A é colorido e bucólico. Uma direção original que consegue fazer uma releitura imprevisível de um roteiro adaptado. (Indicação roteiro adaptado). Sandra Hüller, indicada para melhor atriz por Anatomia de uma queda, também poderia estar indicada por Zona de Interesse, que protagoniza na medida certa, que atriz! Acho que veremos muita coisa dela daqui pra frente.

Dos muitos detalhes que estão no filme, o que eu só notei quando saí do cinema foi o cartaz, que está na imagem deste post: o contraste de um céu sem estrelas com um jardim primaveril já é uma dica do que observar.

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Maratona Oscar 2024: Anatomia de uma queda (a do cinema woke)


Enfileirando uma dezena de prêmios, dentre eles a Palma de Ouro e o Globo de Ouro, e com a indicação ao Oscar de melhor filme 2024 (e não de filme estrangeiro como se esperaria por ser um filme francês), Anatomia de uma queda, de Justine Triet, agrada pelo ritmo, pelas interpretações, pela originalidade na execução, pela sutileza e acima de tudo pelas analogias.  

Num mundo onde tudo precisa ser exaustivamente explicado, justificado e atenuado, assistir a um filme onde a audiência não é tratada como tola já envolve. A estória ser apresentada sem a habitual correria e frenesi do cinema americano, e sem as cotas wokes nas escolhas dos personagens, outra boa surpresa, que mostra uma liberdade de direção e produção que saem do padrão mainstream. Mas o pulo do gato são as analogias. O crime e o tribunal, aparentes motes principais, ficam pequenos perto do que se trata o filme de fato: relacionamento. 

É surpreendente como duas partes em um mesmo relacionamento podem ver a mesma situação de forma tão diferente.  Um se doa, puxa a responsabilidade para si, propõe por vontade própria caminhos que vão lhe exigir mais.  O outro concorda, assume que aquelas responsabilidades serão de fato do outro (afinal foi proposta dele) e segue com a vida.  Este último produz, evolui, cresce. O outro tropeça na confusão de caminhos que ele mesmo escolheu.  O conflito é inevitável.  Tem alguém errado? Uns verão errado o que concordou deixar o fardo maior nas costas do outro – é frio, egoísta, insensível.  Outros verão errado o que fez o plano, executou, fracassou e culpa o outro por sua infelicidade.  Evitando os spoilers, o filme trata brilhantemente sobre esta escolha de lados, sobre de que perspectiva você, e o juri, verão o problema.

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Mudanças no varejo, nunca no atacado

Tenho começado estas reflexões a partir de frases - perdoem a expressão que já considero um clichê irritante - gatilhos.  No mainstream os gatilhos são associados ao despertar de sentimentos negativos, mas “na-minha-cartilha-stream” os gatilhos são positivos, aqueles que te obrigam a parar para pensar e, com sorte, agir.  O gatilho-título desta vez veio de uma tradição cética-conservadora dos ingleses, a crença de que mudanças de qualquer natureza devem ser ser feitas aos poucos e nunca de supetão.  Devagar, pontual, quase que experimental, na tentativa e erro. 

Já começam certos porque fazendo aos poucos quase sempre não fazemos de forma definitiva, o que é ótimo. É bom poder mudar de ideia, é bom poder voltar atrás e acertar o curso se preciso.  Flexibilidade de pensamento que anda junto com aprendizado e evolução.  Sabemos que é humanamente impossível antecipar todos os impactos de uma decisão, porque existe o imponderável.  Implementar mudanças de forma gradual é portanto questão de segurança, de bom senso e que dá tempo de reação se alguma coisa sair muito errada. “Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro” (Sábia Clarice!).

Sabemos que precisamos mudar algum ou muitos aspectos da nossa vida, sabemos que fazê-lo de forma gradual é o mais sensato e ainda assim nem sempre agimos no tempo certo, ou pior, nem sempre agimos.  Em contrapartida aos propensos às decisões intempestivas estão os que não decidem.  Sofrem por antecipação, adiam decisões, deixam de expandir para encolher.  Esperam pelos outros, pelas circunstâncias, pelo “destino”.  Mesmo com a sobre-humana capacidade de se adaptar às mudanças que o ser humano possui, esta turma espera o momento ideal sem consciência de que não tomar nenhuma atitude é tomar uma atitude, é fazer uma escolha e uma das que mais impacta a vida: o que se deixa de viver.

Dois modos operantes drasticamente contrastantes, e para quem finalmente se dá conta disso apresenta-se o terceiro caminho: o do meio termo. O do bendito equilíbrio.  Emocional, financeiro, profissional, orgânico...  A busca incessante pela dose certa, o eterno “não meter os pés pelas mãos, mas também não ficar vendo a banda passar”.  Aparentemente trivial, mas tão difícil!  Concluo que não se apegar às ideias cristalizadas e principalmente, aos ressentimentos, é um começo, e aprender com eles a continuidade.  São eles que constroem nosso caráter e trazem o desconforto que vai mostrar quando é hora de agir, no varejo ou no atacado.

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Uma febre chamada vida

Aos mestres, Edgar Allan Poe e Federico Fellini. 

O belíssimo título desta crônica é fragmento de um poema de Edgar Allan Poe, cuja tradução exata diz: “...e essa febre chamada vida, se conquistou”. 

Quando ouvi a frase hoje de manhã (que me encantou, e me disse tanto, e me deu estalos, e me inspirou - coisas que só a literatura consegue fazer por você em sete palavras) atribuída a ele, Poe, a primeira sensação que tive foi de estranhamento, por remeter a tudo que a obra de Edgar Allan Poe não é: solar, vital, positivo, concreta, realista.

A íntegra do poema, chamado Para Annie, fez mais sentido. Interpretei como um poema de amor, onde ele fala da redenção da vida para finalmente ir ao encontro de Annie, seu amor. Fez mais sentido ainda ao conhecer a estória pessoal de Poe, que perdeu a esposa precocemente, de tuberculose: mulheres jovens e moribundas passaram a ser temática recorrente em suas obras. 

A fixação de Edgar Allan Poe pelo macabro, pelo sombrio, pelo realismo fantástico sempre me encantou, mas eu nunca havia parado para pensar de onde vinha a inspiração para os adoráveis absurdos. E vejam só, é autobiográfico. 

Sempre achei difícil escrever, ou produzir qualquer tipo de arte, sobre o que desconhecemos completamente, sobre o que não sentimos, vivemos ou observamos. Alguma referência, ainda que inconsciente, a mente sempre vai buscar dentro de nós. E vai na nossa essência. E chamamos graciosamente de inspiração, acreditando na fortuitidade, no acaso. Agora imaginem o embate com outro instinto presente (agora em nosso consciente): o da preservação da própria intimidade. 

Quando se produz arte, qualquer uma das sete contidas no Manifesto das Sete Artes (Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Poesia, Dança e Cinema), o autor se expõe. Suas crenças, seus preconceitos, seu propósito de vida, tudo está sujeito à interpretação do leitor. É quase como ficar pelado em praça pública. A nossa sorte é que no mundo digital a maioria das pessoas tem preguiça de ler, o que faz com que a exposição seja direcionada, naturalmente e muito provavelmente, para quem olha na mesma direção que você. Que sorte a nossa!

Termino com algumas sugestões para quem quer conhecer Edgar Alan Poe e a classificação das Sete Artes, além da citação de um mestre da sétima arte, Federico Fellini: “Toda a arte é autobiográfica, a pérola é a autobiografia da ostra”.

O Gato Preto - Edgar Allan Poe | Conto Completo | Fantástica Cultural (fantasticacultural.com.br)

Quais são as 7 artes? - Academia Brasileira de Arte –

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Da melhoria das gerações e a politização do Enem

Hoje foi o segundo dia da prova do Enem.  Como conheço jovens que estão fazendo a prova, venho acompanhando a maratona e o bafafá que foi no domingo passado quando várias partes da prova foram criticadas pelo possível teor político-identitário, ou simplemente tendencioso e extremamente interpretativo que traziam.  De erros grosseiros de ortografia ao tema da redação, passando por suposta crítica ao agronegrócio, foi um prato cheio para tumultuarem o que já não é simples para os únicos que de fato são impactados pelo exame: os jovens.  Felizmente não cancelaram a prova, como chegou a ser aventado, mas fiz questão de entender o ponto de vista deles, os “Enemers” - como eles se auto-identificam com aquela alegria e leveza tão peculiar.  

Conversei com um Enemer equilibrado. Que estudou, mas não bitolou. Que se dedicou a vida toda, e não só não último ano, e que exatemente por isso se deu ao luxo, neste último ano, de levar uma vida normal. Estudou, fez exercícios, foi à praia, se alimentou bem, dormiu bem, namorou e passeou. Tudo de forma equibilibrada, o que na minha modesta opinião é a estratégia correta não só para o Enem, mas para a vida.  Mas vamos ao tema principal da conversa: a redação.  Como eu gosto de escrever e tirei 10 na redação nos dois vestibulares que fiz há mil anos atrás (cujo tema foi “lazer”, levando muitos a zerar a prova ao dissertar sobre raios lasers...), eu tinha tudo para orientar e instruir em como fazer uma boa redação. Mas me recolhi à minha insignificância e possivel desatualização, e sugeri um curso atual de redação, focado no que as bancas examinadoras exigiam hoje.  

Como a redação pode ser feita em um rascunho primeiro, terminada a prova eu pude ler a redação entregue praticamente na íntegra. O tema era: O trabalho invisível de cuidado das mulheres. Importante? Sem dúvida. Adequado? Não sei. Ouvi de muitos que não era adequado pois os jovens teriam que falar de um assunto que só se aprende com experiência e uma vivência que eles não tinham. Discordei. Acho-os perfeitamente capazes de discorrer sobre qualquer assunto que tenham algum nível de compreensão.  Opiniões de lado, a redação que eu lia me parecia a continuidade perfeita do enunciado do tema.  Misandria, misogenia e até Marx eram citados, reforçando a importância e necessidade de atenção do governo para a questão.  Fiquei surpresa com a profundidade da análise dele e a riqueza de vocabulário, mas mais ainda com a ideia que estava sendo proposta ali, tão sútil quanto as questões “neutras” da prova.  

Elogiei a redação e perguntei: mas você pensa assim? E ele, muito calmo, me disse: eu escrevi para a banca, fiz uma redação técnica. O que eu penso eu posso dizer depois. E eu fiquei pensando a semana inteira nisso. Como pode na minha época o tema ser lazer, ou a morte do superhomen (tema do ano seguinte ao meu), e um bando de lunáticos tirar zero por não saber ortografia, e hoje jovens dissertarem, e bem, sobre questões realmente relevantes para a sociedade, com propriedade, ideias e argumentos claros, coesos? Como podem, com tão pouca idade, já terem plena consciência sobre sustentabilidade, igualdade de direitos, deveres, gênero e raça? Se isso não é evolução da humanidade, eu não sei o que é.

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