terça-feira, 21 de novembro de 2006

Da simplicidade da vida

Hoje pela manhã tomei meu café preto acompanhado de um delicioso mamãozinho ‘papai’, como certa vez me definiu Cleide, a diarista. Gosto de conversar com ela, porque é das pessoas simples que costumam vir as estórias engraçadas, autênticas e tocantes. E Cleide era cheia delas.

Eu a conheci há alguns anos na casa de minha mãe, em Friburgo, pouco depois de ela ter chegado da roça, ainda menina-moça. Parecia um bicho do mato, mas muito prestativa e disposta a aprender. Preparávamos um bacalhau para o almoço de sábado, quando receberíamos um casal de dinamarqueses, amigos de longa data de meu pai. Antes de sair com minha mãe para pegar a torta de morangos encomendada para a sobremesa, eu a ouvi dar a Cleide as últimas instruções de preparo do bacalhau. Já estava praticamente pronto, bastando colocar no forno com alguma antecedência para comermos na hora marcada. Buscamos a torta, chegaram os convidados e pouco depois sentamos à mesa. O bacalhau estava bonito, impecavelmente arrumado na travessa, que curiosamente não veio fumegante como de costume. Minha mãe ia servindo um a um, como gostava de fazer, secretamente aguardando os elogios. Começaram a comer, elogiando o diferente suco que bebiam e sem dizer palavra sobre o bacalhau. Nós, de casa, que adorávamos bacalhau, olhávamos com certa desconfiança para o prato. Meu irmão, tentando agradar, disse que a salada de bacalhau estava gostosa. Salada? Não era salada, era bacalhau. Bacalhau à portuguesa. Foi quando ela se deu conta que a travessa estava fria e o bacalhau cru. Cleide aparece.

― Você não pôs o bacalhau no forno, Cleide? – perguntou minha mãe.
― Coloquei sim, Dona Tania.
― Mas está frio!
― Era pra ligar?

Ela repousara o bacalhau no forno. Para que este esperasse quietinho em temperatura amena até o momento de ser servido. Rimos. O bacalhau ficou para o jantar e, graças a Cleide, naquele sábado os dinamarqueses tiveram a oportunidade de apreciar um outro prato que não deixava de ser popular na mesa dos brasileiros: arroz, bife e ovo estrelado, degustado com suco de abacaxi com hortelã, seguido de torta de morangos de sobremesa.

Desde então me surpreendo com as tiradas da Cleide. A imprevisibilidade dela me intriga. Às vezes acho que ela é ingênua, ou tola simplesmente. Já uma amiga minha, advogada, costuma dizer que de ingênuas as domésticas não têm nada. Com uma filha pequena, insiste na idéia de que existe uma máfia de babás, que se reúnem nos “Baixo Bebês” da vida onde, em reuniões organizadas, discutem salários e direitos. Segundo ela, as babás podem até ser tolas como a Cleide, mas em uma semana de pracinha a ingenuidade some, e surgem as peritas em direito trabalhista.

Naquele dia terminei o café pensando se a Cleide também ficaria assim um dia. Talvez tivesse algum tempo, afinal ainda não tenho filhos, as idas ao parquinho não seriam breves. Mas ainda assim relutava em acreditar na Cleide confabulando contra alguém. Alguém que conversava com as plantas para elas crescerem, que achava que a vacina da gripe era um pretexto do governo para matar velhinhos e, pérola maior, que as fichas telefônicas (quando então as usávamos) caíam pelo buraco do orelhão indo pelos canos até a operadora, alguém que acreditava piamente em tudo isso, não podia tramar contra alguém. Não a Cleide.



XXX



Crônica da separação anunciada

Ela: advogada, trinta e seis anos, bonita, realista, vital, alegre. Ele: biólogo (segundo o diploma), quarenta anos, desgrenhado, sonhador, desocupado. Os dois: um filho, um apartamento. Casaram-se em 1995. Com um lugar para morar e amando um ao outro, acreditaram que o relacionamento era completo. A coroação desta idéia viria com o único filho, pouco tempo depois.

Dez anos passaram. Ela, uma executiva bem sucedida, torna-se emocionalmente independente. Ele, que nunca exerceu profissão alguma, vive do aluguel de um apartamento dos pais, uma pessoa com idéias sentado no sofá. Os primeiros cinco anos da vida a dois não anteciparam o problema, porque a paixão não deixa espaço para racionalidades. Mas eis que os anos dourados acabam e o fracasso se anuncia.

A cada vez que ela abre a porta de casa, pensa entrar no túnel do tempo - ali, em dez anos, nada mudara. Inerte na confortável posição de espectador da vida, ele torna-se desinteressante aos olhos dela, e aos de si próprio. O amor próprio acaba, com ele a paixão dela, a esperança do filho, o interesse dos amigos. Na impossibilidade de sobreviver ao tédio da total falta de admiração mútua, ela pede a separação. Ele chora, porque ainda a ama. Ela chora, porque não o ama mais. O filho chora o desamor dos dois.

Mai/2005


XXX



O poder do tédio

Hoje eu levantei às sete horas da manhã, com a empregada tocando a campainha. Normalmente é o Edgar quem atende, porque tem hora pra estar no escritório. Mas dessa vez resolveu fingir que estava dormindo e quem levantou fui eu. Hesitei em voltar pra cama ou ir pra academia. A opção maniqueísta não me agradou, de forma que o meio termo foi não ir pra academia, mas também não voltar pra cama. Terça-feira, início de semana, é igual dieta. Se já começar perdendo o rumo, a semana inteira desanda. Maluco é assim, se não tiver disciplina se perde e sabe-se lá quando volta ao normal. Ainda mais quando se trabalha em casa. Aí é que a coisa pega. Embora eu não tenha uma rotina de trabalho com horários rígidos, tento conciliar meu trabalho com o do Edgar. Se bem que no início da semana nem é preciso tanta conciliação de horários assim. Principalmente depois de um fim de semana chuvoso, um olhando pra cara do outro sem ter o que fazer. Por mais amor que exista, jamais menospreze o poder do tédio numa relação. Um dos dois fatalmente ficará tentado a quebrar a monotonia irritando o outro. Foi o que aconteceu domingo à tarde, durante o almoço. Apesar da chuva, resolvemos almoçar num restaurante na orla da praia, no Leme, onde o Edgar morava antes de casarmos. Um lugar bom e garantido de não ter fila naquele horário de domingo, o que é importantíssimo quando se sai pra almoçar às quatro da tarde, azul de fome. Quer dizer, eu estava azul de fome, o Edgar a fim de perturbar.

— Estes pratos dão pra dois? — Eu perguntei pro garçom, referindo-me ao menu de carnes, que é o que Edgar mais gosta de comer e que a minha fome aceitaria de bom grado naquele dia.

O garçom disse que dava, anotou as bebidas e saiu. O Edgar queria pedir bolinho de aipim de entrada, o que ia atrasar o pedido, atrapalhar nosso apetite e ainda por cima nos engordar. Sugeri o couvert - que era light e de rápido preparo - ele topou. Continuei olhando o cardápio, pensando em qual prato ele concordaria mais rápido em pedir. Eu estava faminta, e queria fazer o pedido antes do grupo de excursão de senhorinhas que ameaçava entrar no restaurante. Fui na Picanha na tábua, era 99% de chance de ele concordar. Ele não quis. Achei estranho e fiz nova tentativa no Churrasco misto. Apelei mencionando até a lingüicinha que acompanhava, era batata ele crescer os olhos. Também não quis. Comecei a desconfiar que ele tinha percebido minha pressa e estava fazendo doce. A essa altura eu já tinha comido todos os pães do couvert, antes tivesse pedido o bolinho de aipim. Edgar resolveu chamar o garçom.

— Você me traz uma cerveja, por favor? — Pediu Edgar, pontualmente, voltando pras azeitonas do couvert.

Tive certeza que ele queria me irritar. Era arriscado esperar eu propor todos os pratos de carne pra depois dizer que queria peixe, que ele detesta, só pra contrariar. Resolvi fingir que não percebi, mas não agüentei vendo as senhorinhas de cardápio na mão.

— Quer pedir o bendito prato logo ou ainda tem mais alguém pra chegar e pedir na nossa frente? — provoquei.
— Você quer ver uma coisa? — falou ele, dirigindo-se depois ao garçom: — Uma picanha na tábua, por favor.

A danada chegou em exatos oito minutos. Não falei nada, tratei de comer logo pro meu mau humor passar (porque fome gera mau humor). E ele continuou:

— Ta vendo como não precisa teimar comigo? Ainda mais na minha área — debochou ele.
— Sua área? Pelo que me lembro, na sua época de Leme, eu vinha aqui tanto quanto você — argumentei.
— Sabia que não ia demorar pra trazerem os pratos — continuou ele.
— Sabia nada, deu sorte.
— Não é sorte, a cozinha está ociosa.
— Ociosa ou não, custava pedir o prato logo? Eu tava com fome! E a cozinha não está ociosa, olha a quantidade de gente aqui dentro — argumentei.
— Mas lá fora tá vazio, por causa da chuva. Tem menos pedido do que o normal, por isso a cozinha está ociosa.
— Você e sua matemática aplicada a amenidades...
— É só raciocínio lógico.
— Você tá dizendo que meu raciocínio não é lógico?
— To dizendo que você é teimosa.
— E você, prático demais.
— Que mal há nisso?
— Nenhum, mas é preciso trabalhar seu lado humano. Na vida nem tudo é pura matemática.
— Teimosa e um pouco louca.
— Eu sou uma pessoa coerente.
— Você é coerente, na sua loucura.
— Ainda bem. Sem um pouco de loucura a vida seria um tédio. Mas você concorda que nem tudo é matemático?
— Claro.
— Você concorda que nem sempre as coisas são presumíveis, que tudo tem seu lado humano e seu lado exato, seu lado espiritual e seu lado físico?
— Concordo. Todos temos vários lados.
— E é por isso que a gente dá certo. Nos completamos, eu sou o lado humano e você o exato.

Achei que tinha provado meu ponto na conversa, quando um garçom derrubou um prato de uma pilha altíssima arrumada em um carrinho próximo à nossa mesa.

— Nossa! — exclamei — Para que tanto prato sobressalente se eles não tem nem onde guardar...
— Não são sobressalentes, a cozinha está ociosa — retomou Edgar rindo.

Set/2004


XXX



Da complementaridade dos sexos

Dizem que os escritores são questionadores. Que suas obras são produzidas após a indagação de determinados assuntos, seguida da vontade de registrar as conclusões tiradas de forma eficiente - por isso escrita - permitindo assim aos leitores compartilharem uma série de respostas possíveis para dúvidas comuns. Se os escritores são questionadores, as escritoras então, nem se fala. Mulher, de maneira geral, adora perguntar. Seus questionamentos são legítimos e a inevitável identificação com certas situações, divertida. Quero dizer que é reconfortante constatar que os conflitos sentimentais femininos nem sempre são causados por um defeito individual. E se for mesmo para chamar de defeito a causa de um problema de amor, que pelo menos seja um defeito coletivo, e não seu.

Mas por que a necessidade de questionar, me questiono. De modo geral as mulheres perguntam mais, avaliam mais, discutem mais. “Por que ainda não me casei?”, “Por que me casei tão cedo?”, “Por que ele me trocou por outra?”, “Com qual dos dois eu fico?”, “Em que você está pensando?”, “Você me ama?”. Ainda que algumas perguntas sejam retóricas, parece necessário confirmar para si mesma uma idéia, questionando-se inesgotavelmente na esperança de aparecer uma conclusão ainda não considerada, ou ter um grande insight sobre como agir em determinada situação.

O homem também se questiona. Mas seu lado prático o faz gastar menos tempo com perguntas e mais na objetividade das respostas. Perguntei uma vez a um amigo:

- Você acha que as mulheres questionam mais do que os homens?
- Sim - respondeu ele pontualmente.
- Por quê?
- Porque é da natureza da mulher falar mais do que o esperado.

Não havia tom de crítica, reclamação ou sequer descontentamento naquela resposta displicente. Ele de fato pensava assim e aceitava isso como uma característica feminina, não um defeito. Embora eu normalmente não aprecie a objetividade em algumas respostas masculinas, desta vez tive que concordar.  É da natureza. Se o homem fala menos me parece natural que a mulher fale mais, equilibrando a comunicação.  O mesmo para os casos onde ambos são do mesmo sexo, mas assumem papéis diferentes na relação. Se ambos calassem, como seria o diálogo num primeiro encontro? Haveria primeiro encontro? E a continuidade do relacionamento? Agora imaginem se ambos falassem com a mesma intensidade e com a mesma necessidade de respostas. Caos. Além do caos, nenhum diálogo: se todos falam, ninguém escuta, se ninguém escuta, não há comunicação, se não há comunicação, não há relacionamento.  É para viabilizar o relacionamento com os homens que as mulheres falam mais. É instintivo, é complementar, é da natureza.




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Cotidiano

Escritora, carioca, jovem. Tenho o prazer de viver na cidade do Rio de Janeiro e estar em uma ótima fase da vida: a da independência com juventude. Quem está lá ou já passou, sabe exatamente do que estou falando. É uma época peculiar, no mínimo. Falo por mim, por minha família e por meus amigos, que mostram diariamente um divertido cotidiano carioca. No Rio de Janeiro há cotidianos que não se acabam mais. Tem de tudo. A diversidade social é tão grande que a população é quase uma fauna (no bom sentido, sempre). Estava aqui pensando em um tema para uma série de crônicas do dia a dia. Algo que interessasse as pessoas não só para informar, mas muito mais para distrair. Apesar do bom humor natural do brasileiro, as pessoas andam apreensivas. Já reparam que todo mundo trabalha demais? Não há um indivíduo para qual pergunto ‘E aí, tudo bem?’, que me responda: ‘Tudo ótimo, ando tão relaxada! Meu trabalho está em dia, vamos tomar um chopinho mais cedo hoje?’ Aparentemente o estresse está na moda.

Até quem sofre de outro mal, passa a estar estressado, afinal é a desculpa do momento. ‘Brigou com o marido, Marisa? Briguei, ele anda estressadíssimo’. ‘Discutiremos esta cláusula novamente? Sim, precisamos estressar esta questão para fecharmos o contrato’. ‘Por que ela cancelou o espetáculo? Crise de estresse’. Tem até criança estressada! No meu tempo, que nem é tão distante assim, criança brincava e no máximo estressava os pais. A si própria, jamais. Mas é compreensível. Se hoje em dia até celular elas já têm, é justo sentirem-se assim. Celular às vezes estressa mesmo. Por essas e outras acredito que as pessoas precisam de distração. É isso que eu, pelo menos, ando procurando. Além do trabalho, que deve ser coisa séria seja ele qual for, nossa única obrigação é ser feliz. O resto é distração. E nada melhor do que o próprio cotidiano para distrair. Ainda mais quando se vive em um grande centro urbano como Rio, cidade que por si só já é musa inspiradora. Dia desses li num livro da doce Zélia Gattai que Jorge Amado gostava de viajar para buscar tranqüilidade e inspiração para seus romances. Refleti um pouco, e com todo respeito pela Bahia, pensei: é porque nem sempre ele viveu aqui.


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